Foi Numa Quarta

Manuel Halpern

O dia em que me tornei camponês
Para João Aguardela

Foi numa quarta-feira que me decidi tornar camponês. Os carros estavam empoleirados nas árvores e o homem da rádio não parava de dar notícias de crimes contra a humanidade dos antípodas do nosso mundo, onde não havia tráfico, mas havia crimes.

Sim, foi numa quarta-feira. Cheguei a casa e doía-me a sola do pé de tanto pisar a embraiagem no pára-arranca-pára dos nossos dias. A gravata revoltara-se contra o pescoço num chupão vermelho e eu dei por mim a hidratar a pele com um daqueles cremes com que se besuntam os rabos dos bebés.

Nessa quarta-feira espreitei pela janela na esperança de ver o céu, mas embora estivesse azul, ora a clarabóia da marquise ora o prédio inamovível que jazia à minha frente, não me deixavam saber. Apenas vislumbrei uma vizinha que debruçava o decote húmido sobre a planta que regava. E foi então que pensei, quem me dera ser camponês.

Era quarta-feira. Desci à loja e comprei uma enxada topo de gama, que prontamente assentei no ombro, como os camponeses fazem. Depois troquei o meu carro por uma carripana constipada, que tossia sem parar mal se ligava o motor, e tremia tanto que eu tinha de segurar o volante com as duas mãos como quem doma um cavalo bravo.

O campo começava logo ali, onde terminava a cidade, e prolongava-se até ao começo da próxima. Um homem de fartas suíças disse-me que para chegar ao campo tinha que virar na segunda a esquerda, depois da bomba gasolina.

Quando cheguei ao campo instalei-me na casa de campo. Pousei a enxada no alpendre, olhei para o céu exageradamente azul e pensei, como é boa a vida no campo.

Naquele dia decidi, amanhã cavo. Pousei discretamente a enxada na casa das ferramentas e fui até ao café da aldeia, onde os camponeses têm conversas campestres de final de tarde. Na carripana ia a ouvir as recolhas de música tradicional portuguesa de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Como o carro tossia cada vez mais alto, eu aumentava o volume até ensurdecer os pássaros.

No café da aldeia havia música todas as quartas-feiras. Então eu tirei da carripana a viola braguesa, disposto a impressionar as hostes com um inesperado dedilhado urbano. Mas por lá estava tudo em silêncio.

Sentei-me ao balcão e pedi um bagaço, enquanto observava a mais bela camponesa, branca e roliça, com braços anchos e peitos folgados, como as camponesas se querem. O que bebes?, perguntei-lhe numa timidez provinciana. Um Bloody Mary, disse-me, pouco sumo e muito gelo, para não atrair mosquitos.

Ao segundo gole vermelho, perguntou-me, remexendo a palhinha, O que fazes hoje à noite?

Olho a lua, respondi.

E o que é que a lua tem de especial? A lua é sempre a mesma, está ali há séculos, ora cresce ora diminui, ora é tapada pelas nuvens ora fica à mostra. A lua é sempre a mesma coisa, não há nada para ver.

Senti-me incomodado com a minha excentricidade urbana. Nunca me tinha ocorrido que a lua se pudesse tornar em algo tão desprovido de sol.

Porque não vens antes ao Ex-Libris?

O Ex-Libris era a discoteca do campo. E eu substituí a Lua pelo Ex-Libris. Senti-me envergonhado por levar a minha carripana ferrugenta, enquanto os outros usavam Mercedes, Rovers, Jeeps.

A camponesa chegou de Smart. Usava óculos escuros mosca, calças largas, uma t-shirt apertada e, para ser franco, já não me parecia tão roliça quanto isso. Levou-me pela mão numa floresta de beats e luzes, na qual eu certamente me perderia se não acompanhado. Depois ela entrou no cubículo do DJ e rodou os pratos do gira-discos como quem está na safra. O público, devidamente drogado, mostrava o seu contentamento, com longos uivos e braços bailantes no ar. Passava um tecno-subversivo, com mais beats do que a pulsação de um hiperactivo.

Ao princípio julguei aquele som insuportável, mas quando a camponesa me forneceu uma ampola artesanal para a boa disposição, entrei no ritmo, e apercebi-me da beleza das semifusas monocromáticas.

Acabámos a noite em casa dela. Recostados num sofá de poliéster. Eu com a minha viola braguesa e ela com uma caixa de ritmos da Korg, capaz de transformar o canto dos pássaros no som de uma locomotiva nervosa. Vamos gravar uma demo, propôs-me. Eu hesitei. Mas quando voltei para a carripana, as recolhas do Giacometti sobre a batida do carro constipado pareceram-me ainda mais magníficas.

Peguei na enxada e fiz-me à cidade, sorrindo sem dar conta, enquanto guiava. Cantarolava as músicas que ouvia e ia tomando notas com a mente. Lá em cima, a lua da cidade estava encoberta por uma mancha de smog que lhe dava uma tonalidade púrpura, que nem a urze da planície.

Manuel Halpern
Março de 2009

Manuel Halpern

Jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias, Manuel Halpern escreve preferencialmente sobre música e cinema, além de manter, desde há dez anos, a coluna fixa O Homem do Leme. Popómano, cinéfilo, bloguer, ávido coleccionador de CD e DVD, e autor de booklets, nasceu em Lisboa no ano da Revolução de Abril. Tem duas filhas, duas peças de Teatro (O Segredo do Teu Corpo e Palco – Quimera, 2006), um ensaio sobre fado (O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas, Dom Quixote, 2004). Licenciado em Comunicação Social, pela Universidade Católica, com pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, na Faculdade Ramon Lull de Barcelona, colaborou, entre outros, com a Visão, Público, Blitz, Antena 2, Diário de Notícias e Corriere della Sera. Nas horas vagas é DJ, integrando a dupla de som e imagem Ouvido Visual. Fora de Mim é a sua primeira ficção.

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