O meu primo só faz uma coisa de cada vez

Ricardo Alexandre

Eu tinha chegado não havia dois dias àquela terra onde o frio é mais frio mas o vinho é mais quente. Fica perto da grande cidade, mas estranhamente tão longe de tudo, como ficam todas as terras cujo nome não associamos à saída de qualquer lanço de auto-estrada. Recebeste-me com um abraço como só tu davas, nem muito forte nem muito fraco, mas tremendamente sentido e com uma envolvencia de gestos que eram teus, não podiam ser de outro nem de mais ninguém.

Recebeste-me com uma frase da qual ainda nos ririamos mais tarde, como nos ríamos tanto de tanta coisa que dava vontade de rir e até de chorar:

– Benvindo ao CRAT, Centro de Recuperação Afectiva do Turvel!

Bem precisava de uma instituição assim, depois da francesa que conhecera um ano antes me ter deixado na merda no estranho auge de um amor secreto num Verão prolongado até ao final do ano, quando finalmente decidiu reatar com o primeiro homem que conhecera, que a queria em casa, afastada da profissão, só a pintar. Coisa francesa, portanto. Valerie decidira ceder às pressões da mãe. Coitada, cardíaca se bem que manipuladora até à exaustão. E para mais, o Pierre ainda era visita de casa e até sócio do pai dela. Grande estatuto para um ex. Rapidamente deixou de o ser. Ex. Passou a noivo. E eu lá levei o coice. Sem pestanejar. Também ia fazer o quê? Matar o estrangeiro? Não, nem pensar! Eu creio na revolução e amo este país mas nunca me deu para matar ninguém!
Que tenha um andar novo, foi o que desejei na altura. Mas nunca uma tragédia do tipo Olival à Graça…

Mas assim te apareci. Meio esfrangalhado. Com vontade de te contar tudo em pormenor. Estavas tu em pause na tua relação de vida, que nunca deixou de ser, fazendo agora o rewind, um play admirável e um rec invejado. O par mais perfeito que já conheci. Deliciosamente incorporando defeitos e virtudes mútuos.

Pois, foi no Turvel. Deste-me aí a ouvir, pela primeira vez, canções que nem sequer eram subterrâneas. Sabia que estavas há muito a criar algo diferente, mas nunca imaginei que soasse assim tão bem. Gostei à primeira. E gostei ainda mais à segunda, à terceira. Entranha-se sem se ter estranhado. Conversámos imenso sobre as nossas vidas, talvez mais sobre a minha atribulada existência sentimental, sobre música também.

Adormecemos tarde e tarde acordámos. Depois de um almoço meio improvisado – mesmo em tua casa, tinhas sempre o cuidado de perguntar se eu alinhava nisto ou naquilo para almoçar – fomos ao café, fumaste o cigarro e fomos ao encontro da oficina de um primo teu que eu não conhecia mas que, pelos vistos era a pessoa ideal, ou talvez a única disponível naquela terra de estrada para Algures, para resolver o problema no teu carro verde antigo, deliciosamente tipo banheira. Conversaste aí tipo meia hora com o tal primo que me perdoe mas cujo nome não recordo e saímos. Sem perguntares pelo que podia ele fazer pelo teu carro, muito menos deixaste as chaves com ele. Estranhei e perguntei. Respondeste de imediato:

– Ricky, não viste que o meu primo estava a arranjar um camião? Achas que ele se ia ocupar de mais de uma coisa ao mesmo tempo? O meu primo só faz uma coisa de cada vez.

Por vezes penso que também tu eras assim. Uma coisa de cada vez. Agora isto, depois aquilo. Não misturar. Talvez os génios como tu sejam assim: concentram-se em apenas uma coisa, empenham-se e colocam aí todo o seu talento e depois sai a obra-de-arte. Diferente, inovadora, a rasgar horizonte, como tu fizeste em disco dezena e meia de vezes, em palco várias centenas. Com tempo. Até a maré encher.

É isto. Como tu começavas tantas vezes cada frase para explicares aquilo que te ia na alma, nessa grande alma sem inclinação para o mal, dizias assim. “Basicamente…”

Imagino que hoje ainda vivo na tua casa da Feliciano Castilho. Esta noite passo eu pela churrasqueira pequena junto à estação e levo o frango e meio para nos lambuzarmos, mais o arroz e as cervejas.

Até já, Amigo!

Ricardo Alexandre

Ricardo Alexandre Encarnação Sousa

Nascido a 26 de Novembro de 1970, na cidade do Porto. Jornalista profissional desde 1989. Carteira profissional nº 2004.

Director Adjunto de Informação da RDP desde Novembro de 2005, quadro superior do grupo RTP, SGPS. Apresenta na Antena1 o programa semanal de informação Visão Global, sucedendo ao programa Mais Europa. Editor de Sociedade/Coordenador da RTP entre Agosto de 2001, exercendo funções na RTP-Porto, e Dezembro de 2004. Jornalista da RDP-Antena 1 de Março de 1993 a Julho 2001, tendo por diversas vezes assumido o cargo de Chefe de Redacção / Editor. Já publicou reportagens e crónicas nos jornais Público, Jornal de Notícias, Record, Notícias Magazine, Semanário, DNA e SETE. É autor dos livros Irão: o país nuclear (Ambar, 2006, com prefácio de Jorge Sampaio), Por Uma Vida Normal – Guerra e Paz na Jugoslávia, (Campo das Letras, 2002) e Palestina, Viver na Intifada (Sete Caminhos, 2004).Prémio Reportagem Rádio do Clube Português de Imprensa, 1999, com o trabalho «Jugoslávia, Cicatrizes para o Futuro». Prémio Repórter Rádio da Casa da Imprensa / Prémio Maria Leonor, «por um conjunto de trabalhos», 2005. FACTOS RECENTES Em Setembro de 2008 foi indicado pela empresa RTP para desenvolver acção de formação profissional na Rádio Moçambique (Beira). Em Julho de 2007, foi enviado especial da Antena1 e RTP à Sérvia, para acompanhamento da situação de instabilidade gerada pelo atraso na definição do estatuto da província do Kosovo, tendo realizado posteriormente uma Grande Reportagem para a rádio e outra para a televisão. Em Setembro de 2006 foi enviado especial da Antena1 a Nova Iorque para realizar e apresentar emissões especiais cobre o quinto aniversário dos atentados de 11 de Setembro. Em Maio de 2006 foi enviado especial da Antena1 ao Irão, quando estava ainda no início o mais recente confronto político e diplomático por causa do programa energético nuclear iraniano. Em Setembro de 2005, foi enviado especial à Croácia, Bósnia Herzegovina e Sérvia, para acompanhamento da situação política na conturbada região dos Balcãs. Em Junho de 2005 foi indicado pela empresa RTP para desenvolver acção de formação profissional na Rádio Moçambique (Maputo). Em Maio de 2005 foi enviado especial da RDP-Antena 1 a Inglaterra para a cobertura das eleições gerais no Reino Unido. Em 2004 foi autor de uma Grande Reportagem sobre o turismo em São Tomé e Príncipe para a RTPN. Em Junho de 2003 foi enviado da RTP ao País Basco espanhol e à Líbia. Em 2001 foi enviado especial da RTP ao Afeganistão, tendo sido o primeiro jornalista da televisão portuguesa a chegar a Cabul após a queda do regime talibã. Ainda em 2001, antes de se transferir para a televisão pública, fez para a RDP-Antena1 a cobertura da campanha presidencial de Jorge Sampaio, foi enviado especial da RDP à Jugoslávia (a propósito das eleições na república do Montenegro e da detenção de Slobodan Milosevic) e ao Médio Oriente (Israel e territórios árabes ocupados).