O Fogo e as cinzas

António Pires

Há muitos milhares de anos, algures na Europa, uma tribo habitava uma aldeia cujo centro era completamente ocupado por uma fogueira enorme, tão grande que as suas chamas se avistavam a muitos quilómetros de distância. Era à sua volta que os homens e mulheres da tribo se reuniam para conversar, discutir, cantar, contar anedotas e mentiras, namorar, exagerar façanhas de guerra ou de caça, transmitir as histórias e as lendas do seu povo, mexericar, dançar e, acima de tudo, para se aquecerem. Mas, apesar daquela fogueira os aquecer, os homens e mulheres da tribo não a usavam para mais nada. Continuavam a comer a carne, o peixe e o trigo crus, não usavam o fogo para fazer outras fogueiras ou tochas com as quais poderiam iluminar-se noutros locais ou afastar os animais selvagens. Não o utilizavam para tornar as pontas das setas mais fortes ou para temperar o ferro. Não o usavam sequer para cozer objectos de barro ou furar mais facilmente os ossos e deles fazer flautas e adornos.

Muitos dos homens e mulheres da tribo até sabiam, ou desconfiavam, que poderia ser assim, mas não se atreviam a fazê-lo por uma razão simples: aquela fogueira era sagrada. Acreditava-se que a fogueira estivera lá desde sempre e que teria sido criada por um deus desconhecido, que num dia longínquo teria soprado o fogo pela sua boca e ali tinha feito nascer a maior e mais bela fogueira de todo o mundo que eles conheciam. Na realidade, um mundo que cobria três ou quatro rios, um lago, uma cordilheira de montanhas e alguns vales vizinhos. Logo, ninguém se aproximava da fogueira, antes se detendo a alguns metros, tanto por temor como por reverência e respeito. Os homens e as mulheres da tribo ofereciam à fogueira preces e alguns sacrifícios, imploravam-lhe para que nunca deixasse de os aquecer, para que se mantivesse para sempre acesa, que os protegesse e nunca os atacasse com as suas labaredas. Como em muitas outras manifestações religiosas, assim como ninguém sabia quem tinha acendido a fogueira, também ninguém sabia como ela se mantinha acesa, forte, viva, enorme. Era um mistério, e assim permaneceria para sempre.

Até que, certo dia, alguns dos homens e das mulheres mais velhos da tribo repararam numa coisa nunca antes vista: a fogueira tinha diminuído de tamanho. Não era assim uma coisa muito evidente. Mas também todos os outros, quando alertados pelos mais velhos, perceberam que a fogueira tinha perdido parte do seu fulgor, da sua força, do seu calor. Estranharam, culparam-se – será que o deus que se esconde na fogueira estaria zangado com eles? -, ficaram preocupados e temerosos pelo seu destino. Mas nada fizeram: ninguém se atrevia a mexer no fogo sagrado; e nem sequer tentaram alimentá-lo. É certo que, por essa altura, aumentaram as orações e os sacrifícios rituais perto da fogueira. Javalis, lebres, ouriços, esquilos, lobos e até um enorme urso foram mortos para aplacar a eventual ira da fogueira e pedir aos deuses para que ela continuasse acesa e para que os aquecesse a eles e às gerações futuras. Mas isso não resultou: ao longo dos dias, das semanas, dos meses seguintes, a fogueira começou a mirrar, a desaparecer, a ser mais um monte de brasas e de cinza do que propriamente um madeiro ou uma fogueirita média. Os anciãos da tribo, os chefes e os feiticeiros começaram então a culpar-se uns aos outros e a culpar terceiros – as tribos inimigas, as mulheres, os jovens, os deuses e outras forças ocultas – pela calamidade que se tinha abatido sobre o seu povo. E a fogueira lá continuava, desaparecendo mais e mais e mais a cada dia que passava. Até que, numa noite escura – uma noite que era ainda mais escura porque a fogueira já não brilhava como tinha brilhado antes -, alguns membros da tribo, alguns mais velhos, outros mais novos, homens e mulheres, rapazes e raparigas, tomaram uma decisão: iriam roubar algumas brasas da velha fogueira e com elas iriam atear uma nova fogueira. E assim fizeram.

Nessa mesma noite, com as brasas que tinham roubado, o grupo rebelde acendeu uma nova fogueira, perto de onde estava a antiga. Era pequena, mas servia perfeitamente: aquecia-os e, para além disso, logo perceberam que com este fogo podiam cozinhar a carne e, de uns poucos grãos de trigo, fizeram o primeiro pão. E muitas outras coisas viriam a perceber no futuro. Mas, antes de esse futuro acontecer, nessa mesma manhã, muitos outros membros da tribo descobriram o que o grupo tinha feito e acusou-o de heresia pelo que fizeram e de blasfémia pelo que, contestando, tinham dito em sua defesa. E foram expulsos da aldeia. Na nova aldeia que fundaram, a alguns quilómetros da original, acenderam uma nova fogueira que, não sendo tão grande quanto a primeira, servia perfeitamente. Descobriram que, adicionando alcatrão ou outros materiais gordos, a combustão da madeira era mais eficaz; descobriram que, se se lhe juntassem alfazema, incenso ou rosmaninho, a fogueira adquiria outros cheiros e cores… E, apesar de já não ser uma fogueira sagrada – sabiam que tinham sido eles a ateá-la com as próprias mãos -, todos eles tinham por ela um respeito enorme e, apesar de já haver outras fogueiras em todas as casas e de inúmeras tochas iluminarem os caminhos ou ajudarem na caça, ainda era junto dessa fogueira comunitária que eles se juntavam para as festas e os folguedos.

Na outra aldeia, a original, os que por lá tinham ficado assistiam à morte lenta, mas irreversível, da fogueira primordial. E que um dia acabou por se apagar definitivamente. Durante muitos anos, alguns dos homens e das mulheres da aldeia ainda lá se deslocavam, reverentes, para contemplar as cinzas agora frias e recordar como aquela fogueira tinha sido bela. Outros esqueceram-se dela e habituaram-se a viver sem o seu calor. E outros foram pedir umas brasas à aldeia vizinha.

(conto inspirado no Mito de Prometeu e por uma frase do compositor Gustav Mahler – «A tradição é a transmissão do fogo e não a veneração das cinzas»; dedicado à memória de João Aguardela, transmissor do fogo que arde na música tradicional)

António Pires

António Pires

António Pires, DJ e jornalista de música, trabalhou no jornal BLITZ durante 20 anos, do qual foi Chefe de Redacção durante 12 anos. Publicou também textos no Se7e, Expresso, A Capital, Revista de Cinema, Face, Mini International e Autores. Realizou e colaborou em programas de rádio na RUT e na NRJ. Frequentou durante três anos o Curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa e completou o Curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema. Dá aulas de História da Indústria Discográfica na Restart, onde também leccionou História do Espectáculo no Séc.XX. É jornalista free-lancer, responsável pelo blog Raízes e Antenas. Colabora com a revista Time Out Lisboa e o jornal «i». É o autor do livro «As Lendas do Quarteto 1111» e tem textos publicados noutros livros: «Rádio Macau: Livro Pirata» e «Contra Danças Não Há Argumentos». Como DJ actuou em festivais como o FMM de Sines, MED de Loulé, Etnias, Mundo Mix, Mundo Dakar, Eco Fest, DocLisboa, Granitos Folk, FIDO e Voz de Mulher, assim como em locais como a Expo de Saragoça, Contagiarte (Porto), CaféVinil (Sintra), MusicBox, Regueirão dos Anjos, Santiago Alquimista, Love Supreme, Onda Jazz, Museu do Fado e Chapitô (Lisboa).

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