Biografia
João Miguel Antunes Aguardela nasceu em Lisboa ao segundo dia de Fevereiro de 1969. O mesmo dia em que nasceu o irlandês James Joyce (1882), já circulava o comboio em Inglaterra (desde 1836), poucas semanas antes de Portugal ser atingido por um sismo de 7,3 na escala de Richter. Filho primogénito de José Manuel e Gabriela, muitos anos funcionários de uma companhia de seguros. Irmão do Pedro, neto da avó Maria, sua grande e eterna referência. Sportinguista, mas nada fanático. Com tranquilidade. Escola Primária nº 29, na Rua do Telhal, em Lisboa. Antes de correr o país e o mundo, fez parte do Grupo Cénico Juvenil e correu pelo Desportivo Monte Real, em Tires, Cascais, colectividade na qual deu os primeiros passos na música. Com a camisola do bairro onde tantos anos viveu e ao qual sempre voltou. Nem que fosse para tomar o café após o almoço e cumprimentar as pessoas.
«(…) O meu bairro é festivo/ o meu bairro é alegre/ o meu bairro é Portugal
(…)» (in No Meu Bairro, Sitiados, 1993).
A música cativou-o cedo. Autodidata, insistiu que queria uma guitarra e conseguiu-a. Os Clash e Bowie começaram a ser referências, os Xutos levavam-no ao Rock Rendez Vous e a impulsionar amizades com quem corria o país para ver a maior banda rock portuguesa.
O liceu na Escola Secundária Fernando Lopes Graça, na Madorna, a amizade com José Francisco Resende, o Mário Miranda numa paragem de autocarro a tratar de arranjar o baixo, depois o Fernando Fonseca na bateria, fizeram o resto. Ingredientes suficientes para os efémeros Hyperactiv Child, depois Meteoros, antes de Sitiados.
«Sabes bem o que te digo/ Quando peço pra sair contigo/ Sabes bem o que desejo/ Quando te vejo/ Quando olhas pra mim», in Quando te vejo, Meteoros, 1987.
Existência fugaz.
Um meteóro que o João, talvez pelo estilo veraneante-pop da música, fez questão de apagar do seu mapa artístico, da sua geografia de afectos musicais.
Em finais de 1987 nasciam os Sitiados.
Dinamizados pelo João, concorrem ao 5º Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vouz e ficam em 2º lugar, atrás da banda do seu primo Artur Costa, os Easy Gents (mais tarde Ritual Tejo) e à frente dos Agora Colora. Com apupos para a decisão do juri, tal tinha sido impressionante a actuação daquele rapaz de boné a acordeão a cantar o Soldado.
«Esta esterna guerra/ que me obriga a ser soldado/(…) Liberdade onde vais? Liberdade onde cais?/ Esta luta é por te amar (…)», in Soldado, Sitiados, 1988.
Na colectânea “Registos” do Rock Rendez Vous aparece o tema “A Noite” que, anos mais tarde seria gravado pelo colectivo Resistência, tornando-se um mega-êxito. João Aguardela ouviu a versão, pela primeira vez, quando já abandonava o recinto da Festa do Avante, ao lado de amigos, em 1991. Deu uma gargalhada e seguiu viagem.
Antes ainda, entra para a banda o acordeonista Manuel Machado (ex-Essa Entente). Faz uma digressão pelo país, de Vouzela ao Luís Armastrondo na Ribeira do Porto, em Dezembro de 1989, num histórico fim-de-semana que culminou com um concertode matiné no Domingo, em jam session, com os lisboetas Clandestinos, com quem os Sitiados partilhavam palcos e cumplicidades nesses primeiros anos da banda. Nessa tarde, no palco da mítica sala portuense, Aguardela cantou “Brand New Cadillac” dos Clash. Pouco tempo depois Machado sai do grupo e é substituído por Sandra Baptista, futura companheira do João. Entram também Jorge Buco (bandolim, que já tinha feito trabalhos de fotografia para a banda) e o baixista João Marques (ex-Clandestinos) que substituiu Mário Miranda, realizador na RTP. José Resende passa a colaborar com o grupo apenas em estúdio e na composição, dedicando-se à sua actividade profissional, a Engenharia.
Mesmo sem qualquer disco editado, os Sitiados faziam, num ano, quase uma centena de concertos. O grupo pondera a gravação de um álbum ao vivo (“Naufrágio”), com o objectivo de fazer uma edição de autor. Mas o culto crescente, o sucesso de temas como “Vida de Marinheiro” nos tops de rádios locais e os conhecimentos da nova manager, Laura Diogo, atiram a banda para outros vôos.
Assinam com a multinacional BMG, dirigida em Portugal por Tó-Zé Brito e lançam o álbum “Sitiados” no início de 1992. O tema “Vida de Marinheiro” lança-os para o sucesso; o álbum de estreia vende mais de 40 mil cópias. Com Aguardela aos comandos, os Sitiados dão vários concertos para dezenas de milhar de pessoas no país e no estrangeiro.
Entram para o grupo Ani Fonseca (guitarra) e Jorge Quadros (bateria, ex-Delfins), em substituição de FernandoFonseca. Jorge Ribeiro (trombone), João Cabrita (saxofone) e João Marques (trompete) são a secção de metais que vem dar um outro fôlego à banda.
Em Junho de 1993, João Aguardela e os Sitiados participam no espectáculo “Portugal ao Vivo”, no Estádio de Alvalade. O segundo álbum, “E Agora?!”, é editado em Setembro. No disco participam Viviane (Entre Aspas), Paulo Bragança e João Ribas (ex-Censurados, actualmente Tara Perdida). É editada a compilação ” Johnny Guitar” que inclui o tema “Marcha dos Electrodomésticos”, uma adaptação que os Sitiados fazem de “A minha Sogra É Um Boi” dos Mata-Ratos. Tema gravado num só take, numa memorável noite de folia na sala de ensaios dos Sitiados, no Restelo.
O final de 1993 é marcado por um concerto de consagração da banda de João Aguardela. A 11 de Dezembro actuam no Pavilhão Carlos Lopes, tendo na primeira parte o fadista Paulo Bragança acompanhado por Fernando Fonseca, Mário Miranda e José Resende, membros fundadores dos Sitiados. Tocaram temas do início da banda, como “Abril”, “Amanhã”, “E Ela Cega” e “Junto ao Rio”.
“Ai junto ao rio/Onde Estou/Quero ficar”, in Junto ao rio, Sitiados, 1988.
No ano seguinte, os Sitiados participam na compilação dedicada a António Variações, “As Canções de António” com o tema “O Corpo É Que Paga” e em “Filhos da Madrugada” com “A Formiga No Carreiro”, numa homenagem a José Afonso que tem direito a espectáculo ao vivo em Alvalade. Nesse ano, muito merecidamente, João Aguardela recebe o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Autores.
Em 1995 é editado o terceiro álbum dos Sitiados, “O Triunfo dos Electrodomésticos”, que inclui uma versão de “Lá Isso É” de Sérgio Godinho, músico consagrado mas razoavelmente desconhecido do público mais jovem, até ao convite de João Aguardela..
Em 1996 é editado o quarto disco do grupo que volta a receber o nome “Sitiados”. O disco inclui uma versão de “A Menina Yé Yé” do Conjunto António Mafra (“o maior conjunto rock português”, diria o João, para quem «António Mafra é o avô, o Sérgio Godinho o pai e os Sitiados os filhos».
Em 1997, João Aguardela edita o primeiro disco do projecto Megafone, o seu projecto mais pessoal, de roupagem contemporânea para recolhas de música tradicional portuguesa de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Megafone 2 e 3 são fabricados e lançados por Aguardela nos anos seguintes (o derradeiro Megafone 4 veria a luz do dia apenas em 2006).
Em 1999, os Sitiados estão no disco “XX Anos XX Bandas”, uma colectãnea de homenagem aos Xutos & Pontapés, com o sucesso “P’ra Ti Maria”. Entra para a bateria Samuel Palitos (ex-Censurados), que também participaria em Megafone, juntamente com Sandra Baptista . O grupo passa da BMG para a Sony, que edita o disco “Mata-me Depois”, com produção de Marsten Bailey.
Amigo de João Aguardela dos tempos da Faculdade de Direto de Lisboa, Rodrigo Dias é outro protagonista na vida musical de Aguardela, tendo integrado várias formações dos Sitiados e Megafone; isto para além de um projecto que nunca chegou a sair da sala de ensaios, já após o fim dos Sitiados.
Ao participar numa iniciativa do SOS Racismo e da Câmara Municipal de Lisboa, Rock&Revolução, Aguardela partilha o palco com o antigo Peste & Sida Luís Varatojo e fica em ambos a vontade de repetirem. O interesse pela poesia e de explorar outras portugalidades na música, junta Aguardela e Varatojo a outros vocalistas como Rui Duarte (Ramp), Viviane (Entre Aspas), Janelo e Prince Wadada (Kussondulola), Dora (Delfins), corporizando o projecto Linha da Frente, saindo para os escaparates em 2002 o álbum radiofonicamente projectado por «Não posso adiar o coração», a partir do original de António Ramos Rosa.
Do trabalho com Varatojo, surgiu o último projecto musical da vida de João Aguardela: A Naifa.
A reinvenção do fado, a portugalidade, as batidas contemporâneas, a voz de Maria Antónia Mendes (Mitó) nas letras de novos e semi-consagrados poetas portugueses: Rui Lage, Tiago Gomes, Adília Lopes, José Luís Peixoto, entre outros. Canções subterrâneas (2004), Três minutos antes de a maré encher (2006) e Uma inocente inclinação para o mal (2008), foram aplaudidos pela crítica e transformaram mais um projecto de João Aguardela (este em co-autoria com Varatojo) em objecto de culto. No caso do último álbum, “Uma inocente inclinação para o mal”, havia um segredo que só postumamente seria revelado. Foi João Aguardela o autor das letras. Nada dissera aos outros elementos de A Naifa, porque não queria para si esse protagonismo, tendo criado para o efeito uma fã que de Espanha “enviara” as letras. A essa personagem fictícia João dera o nome MRT, ou seja, Maria Rodrigues Teixeira , o nome da sua avó.
«adoro mentir/ nada de sério/ um pequeno engano/ de quando em vez/ uma ligeira indisposição/ de acordo com o planeado/ se não insistires/ serás perdoado». in Uma Ligeira Indisposição, A Naifa, 2008.
No último ano e meio antes de morrer, lutou contra o cancro com a imensa dignidade com que sempre esteve na música e na vida. E com o pragmatismo e a sabedoria de quem se habituou a antecipar os tempos. Faleceu a 18 de Janeiro de 2009, no Hospital da Luz, em Lisboa.
A ti João, estamos eternamente gratos.
«Os dias sem ti/ São todos iguais/ São dias sem brilho/ São dias a mais»,
in Os Dias Sem Ti, Sitiados.
texto de Ricardo Alexandre (jornalista, amigo do João)