Megafone

 

Num património quase extinto, João Aguardela junta as recolhas feitas por Michel Giacometti e José Alberto Sardinha, misturando samples com instrumentos eléctricos e tradicionais, permitindo novas soluções musicais, criando assim algo de novo, Megafone.

Conciliando o novo, a tradição e a cultura popular em 4 albuns, Megafone I (1997), Megafone II (1998), Megafone III (2001), Megafone IV (2005).

 

Aprendamos a dançar Megafone

Tudo começou com um vinil de Giacometti. Por causa dele, João Aguardela criou o Megafone: quatro álbuns em que procurou levar até às últimas consequências a sua obsessão com a música tradicional. Aguardela morreu em Janeiro, a associação Megafone 5 perpetua a obra. Dia 4, há festa de homenagem no Centro Cultural de Belém. Mário Lopes

Ele cantava coisas como “o meu bairro é festivo / o meu bairro é alegre / o meu bairro é Portugal”. Lembram-se certamente. Os anos 1990 ali no início e João Aguardela, nos Sitiados, a atirar fados e música popular rock dentro, a pôr o pessoal a exercitar o mosh com canções sobre marinheiros, a comentar a actualidade social com letra que parecia retirada do cancioneiro popular: “Na cabana do pai Tomás / toda a moça prendada / ainda que casada / rebolava naqueles sofás” – e eis como o badalado caso Taveira se transformava em folhetim rural de escândalos e coscuvilhices.

Nos Sitiados primeiro, depois na Linha da Frente, o projecto em que, com Luís Varatojo, reuniu músicos e cantores para dar novo enquadramento a poetas portugueses, e depois ainda, prosseguindo com Varatojo, n”A Naifa, onde o fado se reveste de sons e de versos de agora, João Aguardela sempre procurou isto: o português que existe na música portuguesa, um ponto de contacto entre o que existe hoje e aquilo que somos há, pelo menos, uns bons pares de séculos.

Nos Sitiados, nos Linha da Frente e n”A Naifa fê-lo de forma bastante visível – erguido a estrela pop nos primeiros, destacado “ideólogo”, compositor e letrista nos últimos. Entre uns e outros, contudo, existe uma outra coisa. Pessoal e definitivamente transmissível. Um espaço mais íntimo, um veículo onde levou “até às últimas consequências” a sua obsessão com a música tradicional. Chamou-lhe Megafone: quatro álbuns, editados entre 1997 e 2006, em que as recolhas de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha se cobriam de ritmos house ou drum”n”bass, se adaptavam a teclados fervilhantes e dançavam entre acordeões e vibrafones. Neles, Aguardela desmistificou uma visão folclórica da tradição e, com carinho iconoclasta, retirou-a da sua veneranda clausura.

Aguardela dizia que o trajecto de Megafone se completaria com o quinto álbum. Tinha um em falta quando morreu, aos 39 anos, a 18 de Janeiro de 2009. Mas haverá um Megafone 5. Ou melhor, já existe um Megafone 5. É um site (www.aguardela.com) de homenagem a João Aguardela, com material biográfico e recolhas de imprensa, em que estão disponíveis para download gratuito os quatro álbuns do projecto. É, também, a força motriz dos Prémios Megafone que, com o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores, distinguirão anualmente um músico ou uma banda (Prémio Megafone Música) e uma “entidade não musical” (Prémio Megafone Missão).

Os prémios serão apresentados na próxima quarta-feira, 4 de Novembro, no Centro Cultural de Belém. Dia de festa. A partir das 21h, sobem ao palco do Grande Auditório A Naifa, Gaiteiros de Lisboa, Dead Combo e O”queStrada. A homenagem, neste caso, é tê-los juntos num concerto: “É um grupo de pessoas que o João gostaria de ver reunidas numa noite”, diz-nos Sandra Baptista, companheira de Aguardela, acordeonista dos Sitiados. “Não sabemos o que fará cada uma das bandas”, acrescenta Luís Varatojo. “Nada foi imposto. Achamos, e o João também achava, que aquilo que fazem já é Megafone”. “Música para uma nova tradição”, diria ele – mote perfeito, portanto, para aquilo que evoca o concerto, para aquilo que se ouve na música deste Megafone que urge (re)descobrir.

“Sentia-se ridículo a tocar um blues”

Tudo começou com um disco de vinil de Michel Giacometti comprado na Feira da Ladra: “Alentejo: Música Instrumental e Vocal”. O interesse de João Aguardela pela música tradicional não começou ali, mas foi ali, diríamos, que nela se embrenhou definitivamente. “Quando entrou no mundo tradicional, mergulhou completamente numa portugalidade com que até então não tinha tido contacto”, recorda Sandra Baptista. “Tornou-se quase um vício”, continua: “Ficou viciado em ouvir e em perceber como transportar aquilo que ouvia para os dias de hoje”. Luís Varatojo vai mais fundo: “Descobria ali a sua música. E isso, descobrires a tua forma de expressão na arte, é raro e impagável. Sentia-se ridículo se tivesse de tocar um blues; ali não, porque sentia que “era” aquilo”.

Retrospectivamente, o que ouvimos nestes quatro Megafone? Um trabalho em constante evolução, em que as formas mais agrestes da house e do jungle começam a ganhar calor orgânico e outras expressões, em que as vozes das recolhas passam a conviver com a voz de Aguardela, que escolhia para si as letras que, como explicava ao PÚBLICO em 1999, quebrassem “uma ideia formada sobre o que é cantado na música tradicional, com temas muito limpinhos e arranjadinhos”: “Há textos em que me sinto mais próximo do universo dos Mão Morta do que propriamente da tradição”, confessava então. Este ponto é essencial: quebrar ideias feitas, reconstruir, descobrir novos sentidos. Tudo resumido nisto que, também em 1999, declarou ao “Jornal de Notícias”: “Estes discos podem ser vistos como folclore, pois a alternativa a eles é não fazer nada. Se tivermos uma atitude demasiado respeitosa arriscamo-nos a não ir longe. E isso não é solução para mim”.

“Intuitivo”, “curioso”, metódico na pesquisa e célere na concretização das ideias, via a música de Megafone, aponta Sandra Baptista, “como um momento fotográfico” – “sem receio de ficar mal na fotografia ou com a fotografia distorcida”.

Tiago Pereira, realizador de “Tradição Oral Contemporânea”, videasta que se dedica a explorar pontes entre tradição e modernidade – como no espectáculo multimédia “Mandrágora”, onde mezinhas e cantares tradicionais encontravam eco na música de Tó Trips ou Tiago Guillul -, destaca que o trabalho de Aguardela em Megafone era mais profundo do que a própria música: “O que ele fazia era passar um pensamento, mais do que um mero espectáculo musical”. Para além da música, portanto: “Quando ele faz Megafone surpreende, tal como [o artista vanguardista] Ernesto Sousa, quando em 1969 traz a primeira exposição da [artesã] Rosa Ramalho, de Barcelos, a Lisboa e a põe numa galeria com o Julião Sarmento ou o Fernando Calhau”.

Em 1997, quando foi editado o primeiro Megafone, ninguém estava preparado para aquilo: projecções vídeo de pastores e trabalhadores no campo, os ritmos a atirarem-se sobre as melodias e o público, embasbacado, sem saber como reagir. Sandra diz-nos que nos concertos, em Portugal, nem por uma vez o público dançou. Olhava-se em volta à procura de um sinal – “Como se dança Megafone?”, pergunta retoricamente Sandra Baptista. “Era preciso aprender ou inventar”, responde Luís Varatojo.

Música tradicional mutante

Em conversa com o Ípsilon, Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, não demora muito a sentenciar: “Parece-me que o povo português não é grande dançarino”. Culpa o “processo de folclorização iniciado nos anos 1930, em que tudo foi reduzido aos ranchos folclóricos, e a música começou a ser feita de forma parada e cristalizada”. Ou seja, mesmo existindo muito que dançar na música tradicional portuguesa, roubaram-nos a “espontaneidade”: “É sempre preciso alguém que ensine, não há o chegar e dançar, como não há o chegar e tocar”. Mais. Entre a “folclorização”, aquilo que Guerreiro classifica como “a subjugação da tradição a uma ideia de poder” – Estado Novo, pois claro -, e um oposto que o confrontou, “o lado Giacometti”, “mas que também criou os seus ícones e as suas falsidades”, sobra uma zona difusa, que é onde tudo se renova, que é onde não há espaço para diabolizar ou sacralizar.

É precisamente aí que encontramos os Gaiteiros de Lisboa, é precisamente aí que, apesar de tudo o que os separa, está o Megafone: “O facto de termos abordagens diferentes sobre a mesma coisa não é suficiente para que haja divergência no nosso trabalho”, conclui.

“O Megafone é um dos irmãos de uma família maior, a música tradicional mutante”. É assim que António Pires, jornalista e crítico musical, autor do blogue “Raízes e Antenas”, enquadra a obra do Megafone. Faz parte de uma família de criadores a que pertencem, por exemplo, a Banda do Casaco que, nos anos 1980, gravou com a pastora beirã Ti Chitas, ou os Sétima Legião, que, em “Sexto Sentido”, fundiram tradição com electrónicas. Tudo gente que, como recorda António Pires, seguiu a preceito um aforismo de Gustav Mahler: “A tradição é a transmissão do fogo e não a adoração das cinzas”. No caso de Megafone, vê-se ali “um trabalho de desconstrução iconoclasta, mas isso só acontece quando se ama profundamente a música tradicional”. Caso contrário, acentua, “faria essa “desconstrução”, por exemplo, com os Einstürzende Neubauten e canções de pigmeus africanos”.

João Aguardela, ele que se sentia ridículo a tocar um blues, nunca o faria. “Quando toco o Megafone ao vivo, sinto-me um pouco como aqueles artesãos que trabalham à frente do público nas feiras de artesanato”. Moldada a matéria perante os nossos olhos, resta-nos dar o próximo passo. A obra está aí, disponível para ser fruída e para inspirar novos futuros. É tempo de a aproveitar. Tempo de dançar Megafone.